A História de Marcos de Sertânia e a Escultura da Cadela Baleia
No interior do sertão pernambucano, onde a terra é seca e a vida exige resistência, nasceu uma arte que atravessou o tempo, as fronteiras e hoje emociona pessoas em todo o país. Essa arte tem nome e raízes: Marcos de Sertânia , artesão que transformou a madeira em narrativa e deu forma a uma das peças mais simbólicas da arte popular brasileira — a escultura da Cadela Baleia .
Inspirada no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a escultura ganhou vida através das mãos de Marcos de Sertânia , e hoje carrega consigo uma história de família, sertão e transformação.
1. Um começo entre ferramentas e madeira
A história de Marcos de Sertânia com a arte começou na casa do avô. Ainda criança, morando na zona rural, ele passava os dias em meio às ferramentas dos tios e do avô, todos artesãos. Foi ali, naquele ambiente simples e cheio de ferramentas, que ele começou a se interessar pelo trabalho manual com a madeira.
Seu avô já era artesão, e com ele trabalhavam também quatro tios. O artesanato fazia parte da vida da família. A oficina era quase uma extensão da casa. Marcos de Sertânia , curioso, começou a brincar com as ferramentas e a experimentar talhar a madeira, sem grandes pretensões. Mas logo percebeu que havia ali algo que o conectava com suas origens. Ele mexia na madeira como quem procura sentido, e foi assim, devagar, que a arte entrou em sua vida — como herança, como aprendizado, como caminho.
2. A vida sertaneja como centro da criação
Desde o início, Marcos de Sertânia teve como inspiração principal o sertão e o modo de vida de seu povo. Suas esculturas retratam o dia a dia do homem do campo: o vaqueiro que cuida do gado, a mulher que carrega água na cabeça, o criador que busca os animais na caatinga.
Mais do que registrar cenas, o que ele sempre buscou foi mostrar a resistência — a forma como os sertanejos sobrevivem em meio à escassez, como lidam com o pouco, com a seca, com o calor. Cada figura que ele cria tem raízes nessa observação da realidade. São peças que contam, em silêncio, o esforço e a dignidade de quem vive na terra seca.
Marcos de Sertânia sempre teve como objetivo mostrar esse povo com respeito e verdade. Suas peças não idealizam, mas humanizam. É arte com raiz, feita de dentro para fora, que transforma o sofrimento em beleza e revela a força que existe no cotidiano do sertão.
3. O cachorro sempre presente
Em muitas dessas representações da vida sertaneja, uma figura aparece com frequência: o cachorro. Presente nas esculturas de famílias retirantes — o homem, a mulher, a criança no braço e o cachorro ao lado — ele era retratado por Marcos de Sertânia como parte inseparável dessa realidade. “Sempre teve essa identidade com o cachorro”, ele conta. No sertão, o cachorro é mais que um animal: é parceiro, companhia, guardião.
Com o tempo, as pessoas que viam suas esculturas começaram a fazer uma associação espontânea com Vidas Secas, onde a cadela Baleia acompanha a família em fuga da seca. Essa identificação fez nascer algo novo.
4. A Cadela Baleia ganha forma
O público começou a pedir apenas o cachorro. “Faz só a cachorrinha”, diziam. A Cadela Baleia , que antes aparecia como parte da composição da família sertaneja, agora ganhava destaque e passava a ser peça principal. Foi o próprio público que transformou a escultura em algo mais. A escultura da Cadela Baleia ganhou vida própria.
Magreza acentuada, olhar cabisbaixo, postura resignada. A figura traduz não só o animal do livro de Graciliano Ramos, mas todo o simbolismo que ela carrega: a fidelidade, o afeto em meio à seca, o sofrimento silencioso. A escultura tocou o coração das pessoas. E assim, Marcos de Sertânia viu sua obra se espalhar.
5. Do quintal para o bairro: uma arte que gera trabalho
Com o aumento da demanda, Marcos de Sertânia percebeu que precisava de ajuda. A solução foi repassar o ofício. Pessoas da vizinhança começaram a aprender com ele no quintal, e logo nasceu uma linha de produção artesanal. Hoje, cerca de dez famílias da região vivem da escultura da Cadela Baleia e de outras peças criadas a partir de sua oficina.
Cada pessoa na produção tem uma função: uma faz as patas, outra o corpo, outra as orelhas. Ainda que o processo seja dividido, tudo é feito à mão, com ferramentas simples — como o canivete cortando diretamente a madeira bruta.
A oficina se transformou em um ponto de geração de renda, aprendizado e autonomia. A arte que começou como tradição familiar agora movimenta a economia local.
6. O poder de transformar a realidade
Para Marcos de Sertânia , a arte sempre foi mais do que sobrevivência. É também uma forma de transformar a imagem do lugar onde vive. Ele sabe que o sertão é muitas vezes visto como um espaço de sofrimento, de escassez, de dor. Mas acredita — e mostra com seu trabalho — que é possível contar outra história.
Transformar a paisagem dura em arte. Transformar a necessidade em expressão. Transformar o cotidiano em beleza. Isso é o que a escultura da Cadela Baleia representa: uma nova forma de olhar para o sertão.
Hoje, suas esculturas estão espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Mas, mais do que isso, estão firmadas como um símbolo da força de um povo e da sensibilidade de um artista que encontrou, na madeira e na resistência, seu caminho.
Conclusão
A trajetória de Marcos de Sertânia e a criação da escultura da Cadela Baleia sintetizam o poder da arte popular como resistência, memória e transformação. Nascido no seio de uma família de artesãos, ele levou adiante uma tradição que não apenas sobreviveu, mas floresceu — mesmo em um cenário marcado pela seca e pela escassez.
Ao transformar o cotidiano do sertão em esculturas que emocionam e comunicam, Marcos de Sertânia deu ao Brasil uma peça que carrega alma: a Cadela Baleia . Inspirada pela literatura, moldada pela vida real, ela se tornou símbolo do afeto que resiste, da dor que fala sem palavras e da cultura que pulsa longe dos grandes centros.
Mais do que uma obra de arte, essa escultura é um elo entre gerações, entre o passado e o presente, entre o sertão e o mundo. Nas mãos de Marcos de Sertânia , a madeira virou história — e sua história virou legado.